GECHINA-ASIALAC UnB
9 min readJul 11, 2022

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O posicionamento chinês no conflito entre Rússia e Ucrânia

Por: Beatriz Maria de Almeida Souza e Natalia Vilela Salviato

Introdução

O presente trabalho busca discorrer brevemente sobre as relações sino-russas e sino-ucranianas ao longo dos anos e também analisar o posicionamento de Beijing no que tange à guerra entre Rússia e Ucrânia. O objetivo é entender melhor como essas relações afetam os discursos do governo chinês em relação ao conflito e como seus discursos e suas ações podem influenciar a maneira como o ocidente enxerga a China.

As relações sino-russas e sino-ucranianas

As relações entre China, Rússia e Ucrânia são significativas para a manutenção do equilíbrio não somente na região que abrange os continentes da Europa e da Ásia, mas também da ordem internacional como um todo (BOLT, 2014, p. 47). Dessa forma, pode-se afirmar que o relacionamento sino-russo é assentado a partir de condições pragmáticas. Nesse sentido, tanto a Rússia quanto a China tomam como prioridade o desenvolvimento econômico doméstico, o que, por conseguinte, fomenta a configuração de acordos mútuos no âmbito do comércio e dos investimentos (BOLT, 2014, p. 50). É notório, portanto, que um dos princípios no qual as relações sino-russas estão ancoradas é o da estabilidade nas condições domésticas a fim de atingir uma base sólida para realizar uma política externa efetiva. Com a pretensão de atingir esse objetivo, são realizadas políticas de cunho nacionalista, as quais necessitam do apoio popular para consolidar a legitimidade estatal (FREIRE, 2013, p. 96). Ainda, pode-se citar o princípio da não-ingerência em questões internas de outros Estados, respeitando a integridade dos respectivos territórios, assim, a soberania tradicional é reconhecida como um elemento essencial nesse âmbito.

No relacionamento entre a China e a Rússia, a multipolaridade seria a materialização da resistência à hegemonia dos Estados Unidos, muito presente na agenda internacional desde o contexto do pós-Guerra Fria. Nesse sentido, um dos exemplos que podem ser citados que corroboram esse aspecto é a assinatura, em 2005, da Declaração Sino-Russa acerca da ordem internacional no século XXI, na qual estava latente a problemática da consolidação de uma ordem multipolar devido, essencialmente, à oposição ao status hegemônico norte-americano (DE HAAS, 2009, apud FREIRE, 2013, p. 98).

Em termos de segurança internacional, tradicionalmente, os russos não percebem a China como uma ameaça (BOLT, 2014, p. 56). Isso se deve porque a ascensão chinesa proporciona a consolidação de uma ordem multipolar, o que permite a existência de margem de manobra da própria Rússia para orquestrar o aumento de sua influência no sistema internacional. Nessa perspectiva, na mentalidade russa, os chineses estariam centrados nas regiões Leste e Sul do mundo, além de seus problemas internos, os quais necessitam da mobilização de recursos e da dedicação de seus líderes para lidar com tais problemáticas (BOLT, 2014, p. 56). A China, por sua vez, também procura estreitar suas relações com a Rússia a partir de ambições específicas. Assim, de acordo com a percepção chinesa, esses laços mais estreitos com os russos podem atenuar a influência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Eurásia para que, dessa forma, os chineses não se deparem com uma situação de isolacionismo nesta região (BOLT, 2014, p. 56).

A anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, evidenciou as divergências existentes no pensamento russo e na mentalidade chinesa. Historicamente, a China, em sua política exterior, possui um discurso de rejeição à interferência externa por parte de qualquer Estado em circunstâncias internas, criticando, muitas vezes, países como os Estados Unidos por agirem dessa forma (BOLT, 2014, p. 52). Assim, naquele contexto, a Rússia havia violado o princípio de não-intervenção no território ucraniano. Ademais, deve-se considerar os interesses chineses na Ucrânia, uma vez que a potência asiática possui planos de investimentos para essa região, além de importar armas e tecnologias ucranianas e de possuir interesses agrícolas nesse território (BOLT, 2014, p. 52). Além disso, o referendo da Crimeia — em que os cidadãos optaram pela anexação ao país russo, porém não foi reconhecido pela Ucrânia, pelos Estados Unidos e pela União Europeia — pode ser utilizado como precedente para as pretensões de entes que possuem relações conflitantes com a China quanto a questões referentes à organização político-administrativa e territorial, como Taiwan, Tibete e Xinjiang.

A manutenção das relações internacionais entre China e Ucrânia é essencial para o estabelecimento de parcerias mutuamente benéficas no âmbito do comércio, dos investimentos, da inovação, da educação e da cooperação. Para os chineses, a Ucrânia é relevante enquanto provedora de matérias-primas, além de ser um considerável mercado consumidor para os produtos chineses (SHESTAKOVSKA; MARKOVA; LEBIEDIEVA, 2021, p. 776). Ademais, deve-se considerar, ainda, o potencial que a China pode assumir no que diz respeito às pretensões ucranianas. Dessa forma, para a Ucrânia, o relacionamento com a China pode propiciar apoio para problemáticas relativas à segurança econômica da Ucrânia, além do fato de que os chineses correspondem aos segundo maiores parceiros no comércio internacional ucraniano (SHESTAKOVSKA; MARKOVA; LEBIEDIEVA, 2021, p. 775–776).

Os chineses possuem amplos projetos para a região que se localiza nos arredores da Europa e da Ásia. Nesse sentido, alguns dos fatores essenciais para o interesse da China na Ucrânia são a sua produção agrícola e a sua localização geográfica, uma vez que seu território pode ser um potencial intermediário no trânsito da Iniciativa Cinturão e Rota (1)(MYKAL, 2016). Somam-se a esses aspectos os acordos de livre-comércio estabelecidos entre a Ucrânia e a União Europeia, que podem permitir aos chineses o aumento de sua influência nas relações econômicas estabelecidas no bloco europeu.

A China no impasse entre Rússia e Ucrânia

Diante da invasão russa na Ucrânia, a China parece se contradizer entre discursos e práticas. Desde o início do conflito, o governo chinês escolheu se manter em uma aparente neutralidade, escolhendo não usar termos como ‘‘guerra’’ ou ‘‘invasão’’ em pronunciamentos oficiais para se referir aos acontecimentos (CHENG, 2022). Muito embora isso possa ser justificado pela própria tradição da política externa chinesa de evitar conflitos e prezar pelas relações comerciais, esse mesmo princípio não foi estendido a outros desdobramentos da guerra — a saber, a China condenou as sanções de países ocidentais à Rússia, classificando-as como ilegais, ao invés de não se manifestar a respeito (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES CHINÊS apud g1 , 2022).

A relutância chinesa em se posicionar de maneira mais enfática, até mesmo crítica, em relação à invasão brutal perpetrada pela Rússia à Ucrânia, pode ser explicada por alguns fatores. Um desses fatores é o interesse comercial entre China e Rússia: apenas nos primeiros três meses deste ano (2022), o comércio entre os dois países cresceu em 28%. De acordo com dados do Banco Mundial, entre os anos de 2010 e 2021, as exportações chinesas para a Rússia praticamente só aumentaram, bem como as exportações russas para a China tiveram um boom (BANCO MUNDIAL, 2022). Em 2021, o comércio bilateral entre os dois países atingiu US$146 bilhões. É importante salientar que a Rússia é uma fonte significativa de energia para a China, tendo os dois países feito um novo acordo de carvão russo no valor de US$20 bilhões (2)(OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY apud WANG, SONG, 2021). Outro elemento que corrobora para uma aparente neutralidade, é o fato de a China também não ver com bons olhos a expansão da OTAN (Organização do Tratado Atlântico do Norte) (3)(ZHAO apud CHENG, 2022), liderada pelos Estados Unidos, por entender que essa expansão geraria instabilidade na região, e, portanto, no sistema internacional. De fato, um forte elo que aproxima os governos chinês e russo são as tensões com os Estados Unidos, pois ambos questionam a hegemonia norte-americana. Assim sendo, é como se o governo chinês estivesse de acordo com as motivações russas, mas não aprovasse suas ações — apesar de também não condená-las publicamente.

O presidente russo Vladimir Putin também se encontrou com o presidente chinês Xi Jinping em Beijing, pouco antes da cerimônia de abertura das Olimpíadas de Inverno de Beijing, no dia 04 de fevereiro deste ano (2022). Após o encontro, em um comunicado conjunto, os dois presidentes anunciaram uma amizade sem limites, além de parcerias estratégicas em todas as áreas de cooperação: comercial, militar, espacial, mudanças climáticas, inteligência artificial e controle da internet. Xi Jinping anunciou que ‘‘os dois países se apoiarão resolutamente na defesa de interesses centrais e aprofundarão a coordenação estratégica mútua’’ (XI, 2022). Eles pretendem ainda “combater a interferência de forças externas em assuntos internos de países soberanos’’ (WONG, 2022). Vinte dias após o comunicado dessa ‘‘amizade sem limites’’, a Rússia invadiu a Ucrânia, e a China não se pronunciou a respeito. Além disso, no segundo dia da invasão, os quinze países (4) do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) votaram uma resolução para condenar as ações militares russas, da qual a China se absteve, deixando, assim, de condenar a Rússia por seus atos. Na votação da resolução pela Assembleia Geral da ONU, a China, mais uma vez, se absteve. Zhang Jun, embaixador chinês na ONU, reconheceu que a situação humanitária na Ucrânia é grave, mas que nenhum país deveria ser forçado a escolher um lado. O atual presidente da Comissão Reguladora de Bancos e Seguros da China, Guo Shuqing, também disse que o país não vai participar das sanções.

A China é notavelmente uma potência mundial em ascensão, seja em âmbito econômico, político, social, educacional, dentre outros. Sua importância no sistema internacional cresce a cada dia mais e, consequentemente, requerimentos relativos ao seu posicionamento no que concerne a assuntos internacionais cresce na mesma medida. Não à toa, Estados Unidos e países europeus, que têm peso na arena internacional, pressionam o governo chinês por um posicionamento mais claro. Para Tong Zhao, membro sênior do Programa de Política Nuclear no Carnegie Endowment for International Peace em Beijing, ‘‘o governo chinês tem sido cauteloso no que tange aos seus pronunciamentos públicos porque apoiar abertamente as ações russas poderia colocar em risco a própria segurança chinesa e também sua relação com Taiwan’’ (TONG, 2022). O que a China parece estar fazendo é ficar às margens das tensões geopolíticas. Mas sem uma manifestação clara da opinião chinesa, o país corre o risco de ser visto como um apoiador da causa russa.

(1) “Belt and Road Initiative” ou “Iniciativa do Cinturão e Rota” é um projeto voltado para o desenvolvimento econômico e comercial, objetivando uma maior conectividade e cooperação entre a Ásia, a África e a Europa (SETH, 2020).

(2) Além de importar carvão da Rússia, a China também importa petróleo, gás e minério de ferro

(3) Uma das ‘‘razões’’ pelas quais a Rússia alega ter precisado organizar uma operação militar especial na Ucrânia quando esta negociava sua entrada na OTAN.

(4)Votaram a favor: Albânia, Brasil, Estados Unidos, França, Gabão, Gana, Irlanda, México, Noruega, Quênia e Reino Unido. Votaram contra: Rússia. Se abstiveram: China, Emirados Árabes Unidos e Índia.

REFERÊNCIAS

BEECH, Samantha; HIPPENSTEEL, Chris. China reconhece gravidade de situação humanitária na Ucrânia. CNN Brasil, 24 março 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/china-reconhece-gravidade-de-situacao-humanitaria-na-ucrania/. Acesso em 27 de abril de 2022.

BEECH, Samantha; HIPPENSTEEL, Chris. Invasão russa da Ucrânia revela conflito de interesses de China e Índia. CCN Brasil, 08 março 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/invasao-russa-da-ucrania-revela-conflito-de-interesses-de-china-e-india/. Acesso em 28 de abril de 2022.

BOLT, Paul J. Sino-Russian Relations in a Changing World Order. Strategic Studies Quarterly, vol. 8, n. 4, pp. 47–69. 2014. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/26270816?seq=1. Acesso em: 02 mai. 2022.

CHENG, Evelyn. China refuses to call Russian attack on Ukraine an ‘invasion,’ deflects blame to U.S. CNBC, 2022. Disponível em: https://www.cnbc.com/2022/02/24/china-refuses-to-call-attack-on-ukraine-an-invasion-blames-us.html. Acesso em 28 abril de 2022.

China se opõe às sanções ‘ilegais’ contra Rússia. G1, 09 junho 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/02/25/china-se-opoe-as-sancoes-ilegais-contra-russia.ghtml. Acesso em 09 de junho de 2022.

FREIRE, Maria Raquel. Confluência na Ásia? As relações Rússia-China. Lisboa: Instituto Português de Relações Internacionais. n. 38, pp. 95–104. 2013. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/43855. Acesso em: 04 maio. 2022.

MYKAL, Olena. Why China is Interested in Ukraine?. The Diplomat. 2016. Disponível em: https://thediplomat.com/2016/03/why-china-is-interested-in-ukraine/. Acesso em: 04 mai. 2022.

Qual é o papel da China no conflito entre a Rússia e a Ucrânia?. Instituto Liberdade e Cidadania, 2022. Disponível em: https://www.flc.org.br/estudos_e_debates/qual-e-o-papel-da-china-no-conflito-entre-a-russia-e-a-ucrania/. Acesso em 27 de abril de 2022.

Resolução da ONU: por que China, Índia e Emirados Árabes se abstiveram?. G1, 26 fev. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/02/26/resolucao-da-onu-por-que-china-india-e-emirados-arabes-se-abstiveram.ghtml. Acesso em 27 de abril de 2022.

SETH, Shobhit. One Belt One Road (OBOR). Investopedia. 2020. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/o/one-belt-one-road-obor.asp. Acesso em: 04 mai. 2022.

SHESTAKOVSKA, Tetiana; MARKOVA, Ievgeniia; LEBIEDIEVA, Nadiia. Leadership Positions of Economic Relations between Ukraine and China. Modern Economy, v. 12, n. 04, pp. 775–786, 2021. Disponível em: https://www.scirp.org/html/5-7202704_108510.htm. Acesso em: 04 mai. 2022.

TADEU, Vinícius. Brasil e 10 países votam por resolução crítica à Rússia na ONU; China se abstém. CNN Brasil, 25 fev. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/brasil-e-10-paises-votam-por-resolucao-critica-a-russia-na-onu-china-se-abstem/. Acesso em 28 de abril de 2022.

WANG, Kai; SONG, Wanyuan. Ukraine war: What support is China offering Russia?. BBC Reality Check, april 14th 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/60571253. Acesso em 27 de abril de 2022.

WONG, Tessa. Quais são os interesses da China no conflito entre Rússia e Ucrânia?. BBC News, 05 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60266969. Acesso em 27 de abril de 2022.

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Grupo de estudos do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB) que se dedica a analisar a China e seu papel no mundo.