O posicionamento chinês dentro do Regime Ambiental Internacional

GECHINA-ASIALAC UnB
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9 min readOct 1, 2021

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por Maryana Picinato

Introdução

Em agosto de 2021, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC — ONU) declarou que a temperatura global se elevará mesmo com a diminuição de emissões dos gases do efeito estufa nos próximos 30 anos — este é um cenário já irreversível, em que catástrofes ambientais poderão ser mais recorrentes e se agravarão. No mesmo mês, a província chinesa de Henan sofreu tempestades que geraram enchentes e este é apenas um dos fenômenos climáticos extremos neste ano.

Com a discussão climática em pauta e, aparentemente, com maior reafirmação da urgência de discussão no cenário internacional, a China já é um destaque da questão e pode utilizar o Regime Ambiental Internacional (RAI) para colocar-se como uma potência mundial. O RAI, atualmente, pode ser definido dentro dos vários protocolos climáticos, como o Acordo de Paris, as Conferências das Partes (COP) e a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (UNFCC, sigla em inglês), os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre outros — girando em torno de formulação de regras e normas, princípios e tomadas de decisão com o objetivo de mitigar as mudanças climáticas (AVENLHAN, 2013).

O presidente Xi Jinping já deu declarações que confirmam essa intenção chinesa — de servir como um exemplo — e a Belt and Road Iniciative (BRI) sinaliza isso, com o selo dos ODS, que serve de modelo para outros projetos semelhantes. Além disso, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, dentro do contexto da BRI, declarou que: “A liderança chinesa em ações climáticas está ajudando a mostrar o caminho [de como enfrentar desafios climáticos tão difíceis]” (UN, 2019, tradução nossa).

Contudo, há uma discordância entre o exemplo chinês no âmbito internacional e as verdadeiras ações do governo internamente. Na questão das enchentes de Henan, o governo do Partido Comunista Chinês (PCC) negou a conexão dessas anomalias climáticas com o aquecimento global. Inspirada por esse acontecimento, a presente análise busca compreender melhor quais as divergências entre o posicionamento e as ações chinesas de fato e se ela tem legitimidade para que se tornar uma potência no RAI.

Regime Ambiental Internacional e a China

As Organizações Internacionais e o multilateralismo têm bastante relevância para a estabilidade mundial. Ruggie (1992), ao conceituar a hegemonia que se deu no pós-Segunda Guerra Mundial, aponta o interesse dos EUA e a necessidade de se manter a paz, resultando em uma liderança americana que foi tão importante para influenciar outras partes. Pensando no Regime Ambiental Internacional (RAI), que se consolida por meio de várias Organizações, verifica-se que se mantém os princípios de abrangência e impacto e que só se torna efetiva se há “vontade” de uma liderança hegemônica. Naquele momento, os EUA se interessavam com a estabilidade mundial para não ter tantos prejuízos econômicos. Agora, de um lado do xadrez político internacional,está o distanciamento histórico dos EUA da discussão sobre o clima, com o pico no governo de 2016 a 2019 [1]; do outro, a 2ª potência mundial, e forte candidata na área, tem projetos bastante avançados nas áreas de sustentabilidade, estando cada vez mais presente no RAI.

Num primeiro olhar, as ações chinesas parecem promissoras: ainda em 2017, a China já demonstrava interesse na questão climática quando ultrapassou as metas de sustentabilidade da agenda 2030 naquele ano — já tinha reduzido as emissões de carbono em 97% do objetivo por exemplo, mesmo estando a 13 anos de 2030 (ROSS, 2017). Em 2019, estudos da NASA apontaram a China e a Índia como protagonistas do reflorestamento global — estes países estão se tornando “verdes” (TABOR, 2019). O governo anunciou que, até 2025, almeja zerar o uso de plástico descartável. Xi Jinping também declarou, na Assembleia Geral da ONU em 2020, que, o país irá neutralizar a taxa de emissão de dióxido de carbono (CO2) até 2060 e também irá disponibilizar um Centro Internacional de Pesquisa de Big Data sobre os ODS para facilitar a implantação destes em todo o mundo (CHINA, 2021).

Todavia, há a tendência chinesa de colocar o interesse nacional, principalmente o desenvolvimento econômico, à frente da política externa (MOREIRA; RIBEIRO, 2016). Quando se pensa no início do Regime Ambiental Internacional, que começa a se consolidar nas últimas décadas do século XX, a China mostrou-se como parte de uma “linha dura” nos momentos de definição das metas palpáveis para a diminuição das mudanças climáticas inicialmente. Aos poucos, ela inseriu-se mais nesse regime, estando progressivamente presente e sendo, também, um dos principais atores.

Hoje, é impensável falar sobre essas questões sem mencionar o governo chinês, não só pela questão política, mas por causa justamente da prioridade pela economia — o país é uma “indústria do mundo”. As taxas de emissão do CO2 são preocupantes — o gigante asiático lidera este ranking desde 2006; em 2019, emitiu 10.175 milhões de toneladas de CO2 (Global Carbon Atlas, 2019). Ainda, espera-se que o pico de emissão seja em 2026, e os níveis apenas começarão a baixar depois de 2030 — até lá, a China seguirá uma crescente de emissão desse gás do efeito estufa. A sua matriz energética, realmente, ainda é muito baseada na fonte de carvão mineral e petróleo, os quais são muito poluentes. Pensando ainda no projeto da BRI, há também várias críticas de como é um plano que gera poluição por causa do financiamento de outras usinas de carvão construídas fora do território chinês (BROWN, 2021). Além disso, a China tornou-se muito interessada em fontes de petróleo fora do território chinês — como exemplo, há o crescimento da presença de capital chinês nas indústrias petrolíferas do Brasil, pela Petrobrás (ver mais em BARBOSA, 2020).

Além dessas questões, a China tem usado o RAI para não ser tão cobrada. Desde o início das discussões sobre a responsabilização da emissão de gases do efeito estufa (GEEs), o governo do PCC se esquiva de grandes consequências. Um dos princípios de colaboração dentro do RAI é o de “responsabilidades comuns, porém distintas” — em que os países em desenvolvimento (ou emergentes) não sofrem penalizações econômicas e podem ter metas mais baixas por ainda não serem tão industrializados. A China, por questões históricas e pelo seu IDH, é colocada dentro do grupo de países emergentes, logo, dentro de organizações internacionais ela não é cobrada como um país desenvolvido — algo que é muito questionado por alguns grupos já que tem uma economia muito singular e sua sociedade se desenvolve cada vez mais.

Ainda dentro das teorias de transição de poder (SZUCKO, 2015), percebe-se que as potências emergentes insatisfeitas — aqui, pode-se entender a China — podem usar o próprio regime para tentar uma maior ascensão, usando mecanismos multilaterais ou tentando formular novas regras. A China usa os feedbacks [2] desse regime internacional para maximizar os seus interesses, olhando para seus incentivos e oportunidades e, também, aproveita-se da falta de sanções, não tendo tanta pressão econômica para diminuir a emissão GEEs urgentemente (SZUCKO, 2015).

Mesmo que, inicialmente, a China tenha uma postura cética em relação aos problemas ambientais, atualmente, esse é um ponto que abre um espaço para a ascensão chinesa ao mesmo tempo que é um desafio interno. Como já mencionado, o país já reconhece publicamente que há uma necessidade de repensar o consumo de energia de origem fóssil e já possui vantagens uma vez que já consegue atrelar parte do desenvolvimento e inovação tecnológica à sustentabilidade, como o Plano de Ação da Inovação de Tecnologia de Energia (2018) e trabalha nessa questão nos últimos dois planos quinquenais. Os chineses possuem grandes fontes de energia solar, sendo os líderes mundiais (BROWN, 2021) e tem investido muito em carros elétricos também [3], ou seja, eles começaram a utilizar outras fontes de energia limpa.

É importante destacar que essas ações do governo do Partido Comunista Chinês podem ser usadas junto ao discurso da “ascensão pacífica e harmoniosa” e “futuro compartilhado”, na política externa, e “civilização ecológica” (termo utilizado desde o 11° Plano Quinquenal), na política interna — isto é, faz parte da política chinesa. Porém, ainda é questionável a inserção real dessa temática na agenda do governo quando se tem metas não tão ambiciosas em questão de emissão de GEEs no 14° Plano Quinquenal [4] (SHI, 2021) além de posicionamentos como o do governo sobre as enchentes em Henan.

Brevemente comentando o recente discurso da 76° Assembleia Geral da ONU, Xi manteve a postura chinesa que é promissora nesta área. O presidente chinês reforçou a meta de 2060, afirmou o interesse chinês de se tornar um país de energia limpa e fala em parar de investir em usinas de carvão no exterior. Entretanto, não se sabe quais serão as ações práticas que realmente foram adotadas já que no 14° Plano, discutido em março do mesmo ano, não houve comprometimento com a questão do carvão e no discurso em setembro, não havia metas firmadas para serem atingidas. Portanto, concordando com Shi, aqui, não se tem muitas metas como era esperado do gigante asiático.

Conclusão

A postura da China é insatisfatória quando se pensa nos gastos que estão estimulados com o pico em 2030 para uma neutralização apenas daqui a 39 anos. Pensar que o desenvolvimento econômico ainda se baseia no carvão mineral e que, ainda, o objetivo é manter a maior parte da matriz energética nela é contraditório refletindo sobre a atual situação mundial. Assim, Szucko coloca a questão climática ainda como um desafio para a China na ascensão da potência.

A tomada da liderança pela China no RAI é relevante pensando na ausência da primeira potência do mundo. Esta pode ser uma brecha mais explorada pelo país quando se pensa numa “ausência” dos EUA, país que tem um histórico de baixíssima participação, sendo que os chineses já conseguem maior destaque em alguns pontos. Ademais, por ser o maior emissor de GEE atualmente, os chineses são um dos atores que mais precisam adequar as suas fontes de energia para energias limpas.

É do interesse político-econômico do país ter maior atuação no RAI — o que já é um ponto positivo para a ascensão de uma hegemonia segundo Ruggie. Como Guterres aponta, o mundo precisa de uma grande influência e a China é forte candidata a isso, entretanto, precisa alinhar os seus discursos internos.

[1] Os EUA não assinaram Protocolo de Kyoto e deixaram o Acordo de Paris em 2017, demonstrando pouca disposição no RAI.

[2] O sistema de feedbacks é um dos conceitos de Krasner, um dos teóricos que discutem os regimes internacionais.

[3] Empresas como a Fiat, Ford e Volkswagen já demonstram interesse tanto em desenvolver a tecnologia de carros elétricos junto a empresas chinesas, fechando contratos, mas também, no mercado consumidor em si que está entre os maiores mercados de carros elétricos do mundo. Além disso, o 14° Plano Quinquenal prevê que até 2025, metade dos carros no país serão elétricos.

[4] Um exemplo disso é que o 14° Plano não prevê fim da construção de usinas de carvão por exemplo, por mais que tenha como objetivo diminuir as emissões de CO2 — mas não há nenhum número ou percentagem definitivos. Ainda, Shi (2021) ainda aponta que as metas sobre matriz energéticas perderam um pouco o rigor no formato que serão avaliadas — não sendo mais metas vinculantes.

REFERÊNCIAS

ALVENHAN, Lívia. 2013. Construção e análise do Regime Ambiental Internacional. Disponível em: https://rari.paginas.ufsc.br/files/2013/07/RARI-Artigo-3.pdf. Acesso em: 11 de set de 2021.

BARBOSA, Pedro. 2021 Petrobras-China relations: Trade, investments, infrastructure projects and loans. Revista Tempo Do Mundo, (24), 319–348. Disponível em: https://doi.org/10.38116/rtm24art11. Acesso em 13 de set de 2021.

BROWN, David. 2021. Why China’s climate policy matters to us all. Disponível em: https://rari.paginas.ufsc.br/files/2013/07/RARI-Artigo-3.pdf. Acesso em 25 de ago de 2021.

CHI, Chen at al. 2019. China and India lead in greening of the world through land-use management. NATURE: Nature Sustainability, Articles. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41893-019-0220-7. Acesso em: 30 de ago de 2021.

CHINA. Presidente. (2012 — presente: Xi Jinping). Discurso do presidente da China na 75ª Sessão da Assembleia Geral da ONU. Disponível em: https://neccint.wordpress.com/2020/09/22/discurso-do-presidente-xi-jinping-da-china-na-75a-sessao-da-assembleia-geral-da-onu/. Acesso em 18 de set de 2021.

GLOBAL ATLAS CARBON. 2019. Emissions: Territorial (MtCO2). Disponível em: http://www.globalcarbonatlas.org/en/CO2-emissions. Acesso em: 30 de ago de 2021.

HU, Yuwei at al. 2021. Update: Record floods kill 33 in Henan, with 8 missing, as nationwide support pours in. GLOBAL TIMES: China, Society. Disponível em: https://www.globaltimes.cn/page/202107/1229294.shtml. Acesso em 30 de ago de 2021.

MOREIRA, Helena; Ribeiro, Wagner. 2016. A China na ordem ambiental internacional das mudanças climáticas. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142016.30870013. Acesso em 11 de set de 2021.

ONU NEWS. 2021. Aquecimento global sem precedentes tem clara influência humana, diz ONU. Clima e Meio Ambiente. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/08/1759272. Acesso em 30 de ago de 2021.

UN. 2019. United Nations Poised to Support Alignment of China’s Belt and Road Initiative with Sustainable Development Goals, Secretary-General Says at Opening Ceremony. PRESS: Secretary-General, Statements and Messages. Disponível em: https://www.un.org/press/en/2019/sgsm19556.doc.htm. Acesso em: 30 de ago de 2021.

ROSS, Katie; SONG, Ranping. 2017. China Making Progress on Climate Goals Faster than Expected. World Resources Institute: Climate, Asia. Dispinível em: https://www.wri.org/insights/china-making-progress-climate-goals-faster-expected. Acesso em 18 de ago de 2021.

RUGGIE, John. Multilateralism: the Anatomy of an Institution. International Organization. Vol 46, n°3. p. 561–598

SHI, YI. 14° Plano Quinquenal é confuso sobre a trajetória climática da China, 2021. Diálogo Chino: China. Disponível em : https://dialogochino.net/pt-br/mudanca-climatica-e-energia-pt-br/14o-plano-quinquenal-e-confuso-sobre-trajetoria-climatica-da-china/. Acesso em 18 de set de 2021.

SZUCKO, Angélica. 2015. A China na ordem internacional: uma discussão sobre a transição de poder. Porto Alegre: Rev. Conjuntura Austral, v.6, n. 32, p. 48–61.

TABOR, Abby. 2019. Human Activity in China and India Dominates the Greening of Earth, NASA Study Shows. NASA: NASA Ames. Disponível em: https://www.nasa.gov/feature/ames/human-activity-in-china-and-india-dominates-the-greening-of-earth-nasa-study-shows. Acesso em 01 de set de 2021.

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Grupo de estudos do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB) que se dedica a analisar a China e seu papel no mundo.