Inclusão financeira na China: o papel das novas tecnologias digitais

GECHINA-ASIALAC UnB
GECHINA-ASIALAC UnB
10 min readSep 14, 2021

--

por Gabriela Barbarioli Siqueira

Introdução

De acordo com o Banco Mundial, a inclusão financeira facilita o alcance de 7 dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Explicitamente, o Objetivo 8 coloca o acesso a serviços bancários, de seguros e financeiros, além do fortalecimento das instituições financeiras de cada país como essenciais para o alcance do trabalho decente e crescimento econômico. A inclusão no sistema financeiro significa que produtos como transações, pagamentos, poupança, crédito e seguros estão ao alcance de todas as pessoas e negócios por preços viáveis. A inserção financeira busca englobar a população desbancarizada ao sistema financeiro a fim de reduzir a pobreza e desigualdade econômica, promover o crescimento econômico e melhorar o bem-estar social. De acordo com o Banco Mundial, possuir uma conta para realizar transações é a porta de entrada para outros serviços, pois permite que as pessoas guardem, mandem e recebam dinheiro. Atualmente, 1,7 bilhão de pessoas no mundo não possuem uma conta básica de transação, o que representa 31% da população adulta mundial.

Na China, assim como em outros países emergentes, existe uma grande preocupação em aumentar o acesso das pessoas, além das pequenas e médias empresas (PMEs) aos serviços financeiros. No gigante asiático, indivíduos e PMEs são responsáveis por 80% da produção econômica e 65% do PIB, mas recebem apenas 20% do crédito gerado pelos bancos e outras instituições financeiras. Isso se dá pois o sistema financeiro tradicional tende a disponibilizar mais empréstimos para empresas estatais, que captam 80% do total da oferta deste produto. Mesmo quando existe a possibilidade de pegar empréstimos de bancos tradicionais, os juros podem ser proibitivamente altos para pessoas físicas e PMEs. Dessa forma, esses atores sociais buscam por alternativas de empréstimos no “sistema bancário sombra” (shadow banking system) [ 1] e, cada vez mais, nas FinTechs.

O desenvolvimento de novas tecnologias digitais no mercado financeiro promovem o suprimento da demanda por produtos financeiros mais acessíveis. Nesse cenário, tanto instituições financeiras tradicionais quanto provedores de serviços financeiros pela internet buscam se digitalizar, sendo a China a líder no mercado de FinTechs. As FinTechs são companhias que possuem um modelo de negócios inovador e que focam seus produtos e serviços nas áreas econômica e financeira. Elas estão localizadas em cidades específicas como Pequim, Xangai, Shenzhen, Hancheu, Chengdu e Chongqing, por políticas e incentivos do governo que atraem companhias de tecnologia para a região. Entre as empresas que dominam o ramo na China estão a Tencent, com o produto WeChat Pay; e a Ant, filiada ao Grupo Alibaba, com a AliPay. Essas FinTechs surgiram em um cenário muito parecido com o brasileiro: uma grande população desbancarizada e com forte uso de smartphones. Hoje, essas companhias oferecem serviços de pagamentos digitais, carteiras digitais, empréstimos descentralizados (peer-to-peer lending), assessoria em gestão de fortunas (wealth management), seguros, dentre outros.

Para fins de proporção, cabe destacar que a Ant já é a maior FinTech do mundo mesmo sem sair da China, com um valor movimentado em pagamentos quase 25 vezes maior que o da PayPal — líder em pagamentos online fora da China — em 2019. Assim, a AliPay consegue alcançar os locais mais remotos do país, que não possuem nenhuma agência bancária física, e oferecer plataformas digitais com os mais diversos produtos financeiros que podem ser acessados apenas com um smartphone, eliminando a necessidade de se locomover para outras cidades.

Vale também destacar a importância dos empréstimos descentralizados (peer-to-peer lending) para a inclusão financeira. Nesse sistema, usuários dispostos a realizar empréstimos se conectam diretamente com usuários dispostos a emprestar, assim, são feitos pequenos empréstimos entre pessoas e de pessoas para PMEs de forma descentralizada. Isso reduz os intermediários no processo, os custos de transação, além de aumentar a liquidez no sistema financeiro e a velocidade no acesso ao capital. Assim, milhares de pessoas e negócios que não teriam acesso a empréstimos em bancos tradicionais, conseguem expandir o seu capital com as plataformas descentralizadas online.

Incentivos governamentais à inclusão financeira

De acordo com a analista em inovação e mestra em Relações Internacionais pela Universidade de Pequim, Laís Sachs, as regulações governamentais chinesas para as novas tecnologias no mercado financeiro tiveram um papel essencial em como essas tecnologias poderiam se traduzir em crescimento econômico e, indiretamente, na inclusão econômica. Como em todas as áreas estratégicas da economia, política e sociedade, o Partido Comunista da China regula fortemente o mercado financeiro e a implementação de novas tecnologias digitais nesse âmbito. O processo de criação de normas contou com a participação de empresários, burocratas, acadêmicos e experts, além de sofrer a natural pressão por parte do sistema financeiro tradicional que visa manter o seu status quo. Nesse cenário, o governo chinês optou por adotar uma orientação de apoio à inovação, visto que essa área, assim como a de pesquisa tecnológica, fazem parte da estratégia de política nacional para alcançar um desenvolvimento econômico sustentável na China. Além disso, o grupo de interesse pró inovação teve grande papel de influência no processo. Composto principalmente por companhias tecnológicas de peso como a Tencent, Alibaba, Ant e Baidu, esse grupo investiu largamente no convencimento dos diferentes níveis governamentais.

Em 2013, durante o Fórum de Davos em Dalian, na China, o então primeiro ministro Li Keqiang comparou a reforma financeira na China com “um movimento chave no xadrez para revitalizar todo o jogo da economia chinesa” (tradução nossa). No mesmo ano, a terceira sessão plenária do 18º Comitê Central do Partido Comunista da China anunciou a iniciativa de desenvolver uma reforma no sentido de integrar progressivamente o sistema financeiro à uma lógica de mercado — para a formação dos preços de taxas de juros e câmbio, por exemplo — e promover a inclusão financeira. Em dezembro de 2015, o Conselho de Estado da China lançou o Plano para Avançar o Desenvolvimento da Inclusão Financeira (2016–2020) com o intuito de promover serviços financeiros adequados para todos os grupos sociais por preços acessíveis, baseando-se nos princípios de oportunidade, igualdade e sustentabilidade econômica. Esse plano estabeleceu as PMEs, agricultores, grupos urbanos de baixa renda, os mais pobres, pessoas com deficiências, idosos e outros grupos especiais como clientes-alvo.

Em 2015, o governo central da China publicou diretrizes para serviços financeiros pela internet, a fim de diminuir os riscos e incertezas para os clientes, além de dar suporte para esse mercado em grande crescimento. O documento estabeleceu um conjunto de regras básicas e medidas preferenciais para serviços financeiros pela internet como pagamentos, empréstimos, seguros, vendas de fundos, financiamento coletivo, financiamento ao consumidor e seguro de proteção financeira. Contudo, essa foi a primeira regulação abrangente do assunto e algumas áreas ainda precisam de um maior desenvolvimento.

Para além das medidas legais, nos últimos anos o Banco Popular da China (BPC), banco central chinês, tem incentivado a expansão da oferta de crédito para o grupo chamado sannong [ 2]— agricultura, áreas rurais e agricultores — e PMEs através de políticas de taxas de reserva diferenciadas, refinanciamento e empréstimos redescontados. Como um exemplo ilustrativo desses incentivos, cabe observar que, no final de 2016, as taxas de reserva para os bancos comerciais rurais foram 5% menores que a taxa de reserva para os grandes bancos comerciais, ao mesmo tempo que as taxas para os bancos de cooperativas rurais, os de vilas e municípios e as cooperativas de crédito rural foram 8% menores, também em comparação com os grandes bancos comerciais. Além disso, o BPC oferece reduções na taxa de reserva para os bancos comerciais que tenham se adequado a requisitos prudenciais e tenham atingido uma certa cota de empréstimos para microempresas e outros segmentos do mercado carentes.

Outro investimento essencial feito pelo governo chinês foi na infraestrutura de pagamentos e de crédito do país. A infraestrutura financeira é um elemento fundamental pois afeta a assimetria de informações e os custos de transação, que impactam diretamente a inclusão financeira. Juntamente com outros participantes, o banco central priorizou o desenvolvimento e manutenção de uma infraestrutura de pagamentos nas áreas rurais. Ademais, o BPC criou um sistema de registro de crédito para reduzir a assimetria de informações entre credores e devedores, além de melhorar a provisão responsável de crédito.

Avanços da inclusão financeira na China

Impulsionada principalmente pelas tecnologias digitais e pelas FinTechs, podemos observar uma crescente inclusão financeira na China nos últimos anos. Entre 2011 e 2017, a porcentagem de adultos que possuem uma conta de transação subiu de 64% para 80% e já está no nível dos países do G-20. De acordo com pesquisa de 2017 do Banco Mundial, 80% dos indivíduos e 96% das empresas chinesas possuem uma conta bancária em instituições financeiras formais, o que está muito acima da média global e da Ásia-Pacífico. Contudo, o uso de crédito é muito baixo na China, apenas 25,5% dos adultos têm empréstimos bancários consideráveis ou histórico de crédito, número abaixo da média global (33,8%). Persiste assim uma cultura financeira informal, dado que 28% dos adultos chineses pegaram dinheiro emprestado com família ou amigos, o que está acima da média da Ásia-Pacífico, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do mundo.

De outro lado, observa-se na China um grande uso da internet e de aparelhos móveis para se integrar no mercado financeiro, principalmente por provedores de serviços de pagamentos de terceiros como WeChat e Alipay. São chamados assim pois esses provedores usam aplicativos de smartphone conectados com uma conta a um banco ou outro tipo de instituição financeira para realizar o pagamento. Na China, 49% dos adultos fazem pagamentos digitais pela internet, sendo para pagar contas ou compra online, enquanto que países de alta renda tem uma média de 68% e os países em desenvolvimento de 11%, quando excluída a China. A China se destaca ainda mais pensando nas compras online pois, em média, entre os adultos de economias em desenvolvimento, 53% dos que fizeram compras online nos últimos 12 meses também pagaram online. Por outro lado, na China, 85% dos que compraram online, também pagaram online.

Mesmo com as evoluções crescentes, a inclusão financeira na China ainda enfrenta diversos desafios. O primeiro deles é a necessidade de estabelecer um conceito comum de inclusão financeira na China, visto que diferentes agências do governo, autoridades locais e nacionais, provedores de serviços financeiros e organizações governamentais ainda divergem sobre o tema, o que influencia negativamente a implementação de estratégias para o avanço da pauta. Outro ponto de atenção está nas distorções de mercado que a forte intervenção do governo pode gerar, além do consequente desencorajamento da competição e ineficiência do sistema financeiro no longo prazo. Nesse sentido, para atingir a meta do plano de inclusão financeira (2016–2020) é necessário que exista uma sustentabilidade comercial e isso se dará apenas com a criação de um ambiente de negócios competitivo e propício à inovação, além de contar com uma regulação sólida, principalmente para gerenciar os riscos relativos ao mercado financeiro digital. Outro ponto sensível é que as áreas rurais, apesar de contarem com os bancos das vilas e municípios e com companhias de microcrédito, ainda se mostram carentes de um ambiente regulatório e com a governança necessária, enfrentando problemas com altos custos de gerenciamento e uma inovação limitada. A última questão a ser considerada é a necessidade de promover uma educação financeira dos consumidores para que eles sejam incluídos apropriadamente, sobretudo por conta da digitalização crescente das finanças.

Considerações finais

A partir das informações analisadas, vemos como as novas tecnologias estão influenciando na inclusão financeira na China, principalmente pela facilidade de acesso através dos smartphones. Nesse cenário, as empresas que disponibilizam serviços financeiros pela internet já possuem um enorme espaço no mercado chinês e influência nas decisões políticas relacionadas à área. Assim, cabe destacar o papel fundamental do governo na criação de um ambiente regulatório e de negócios favorável ao desenvolvimento tecnológico e inovação, além da garantia de segurança e acesso ao sistema financeiro às pessoas que mais precisam. Nesse sentido, observamos que, apesar dos avanços recentes da inclusão financeira na China, ainda há diversas lacunas a serem trabalhadas a fim de garantir que todas as pessoas tenham acesso a produtos financeiros que as possibilitem um maior bem-estar, principalmente se tratando das populações rurais.

O desenvolvimento de novas tecnologias no mercado financeiro está apenas começando e os impactos na economia e sociedade já se dão de forma profunda. Dessa forma, espero com esse artigo despertar alguma curiosidade ao leitor sobre esse tema tão caro aos países e organismos internacionais atualmente.

[ 1] O sistema bancário sombra é uma estrutura paralela ao mercado formal que fornece crédito em todo o sistema financeiro global com pouca ou nenhuma regulação através de um conjunto de operações e intermediários financeiros.

[ 2] Em chinês simplificado 三农 (sān nóng), pode ser traduzido como “as 3 questões rurais”. Expressão referente às principais preocupações no desenvolvimento das áreas rurais chinesas: a agricultura, as áreas rurais e os agricultores.

REFERÊNCIAS

ANA PAULA PEREIRA. Ant Group: tudo o que você precisa saber sobre o maior IPO da história. Forbes Brasil. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-money/2020/10/ant-group-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre o-maior-ipo-da-historia/. Acesso em: 29 Ago. 2021.

CHEN, Weidong ; YUAN, Xiaohui. Financial inclusion in China: an overview. Frontiers of Business Research in China, v. 15, n. 1, 2021. Disponível em: https://fbr.springeropen.com/articles/10.1186/s11782-021-00098-6#citeas. Acesso em: 4 Set. 2021.

China issues comprehensive regulations on internet finance. Norton Rose Fulbright. Disponível em: https://www.nortonrosefulbright.com/en/knowledge/publications/75431c2d/china-issues-com prehensive-regulations-on-internet-finance. Acesso em: 4 Set. 2021.

Country Progress. World Bank. Disponível em: https://ufa.worldbank.org/en/country-progress/china#1. Acesso em: 28 Ago. 2021.

DEMIRGUC-KUNT, Asli; KLAPPER, Leora ; SINGER, Dorothe. Financial Inclusion and Inclusive Growth: A Review of Recent Empirical Evidence. Policy Research Working Paper; №8040. World Bank, Washington, DC. © World Bank, 2017. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/403611493134249446/pdf/WPS8040.pdf. Acesso em: 4 Set. 2021.

Financial reform “key move.” Chinadaily.com.cn. Disponível em: https://www.chinadaily.com.cn/china/2013cpctps/2013-11/12/content_17096651.html. Acesso em: 4 Set. 2021.

LIAO, Rita. The race to be China’s top fintech platform: Ant vs Tencent. TechCrunch. Disponível em: https://techcrunch.com/2020/11/09/tencent-vs-alibaba-ant-fintech/. Acesso em: 29 Ago. 2021.

MOACIR DRSKA. A China ficou “pequena” para a Ant Financial, a maior fintech do mundo. NeoFeed. Disponível em: https://neofeed.com.br/blog/home/a-china-ficou-pequena-para-a-ant-financial-a-maior-fintech -do-mundo/. Acesso em: 29 Ago. 2021.

Overview. World Bank. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/financialinclusion/overview#1. Acesso em: 29 Ago. 2021.

ROGÉRIO GODINHO. O que é a Ant Financial, a startup mais valiosa do mundo. ISTOÉ DINHEIRO. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/bilhoes-de-sorrisos/. Acesso em: 29 Ago. 2021.

SACHS, L. New financial technologies in China and Brazil and their implications for inclusive economic growth. Dissertação (Mestrado em Política e Relações Internacionais). Yenching Academy, Universidade de Pequim. Pequim, p.161. 2018.

Financial Inclusion. World Bank. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/financialinclusion/overview#1. Acesso em: 4 Set. 2021.

Sustainable Development Goal 8: Trabalho decente e crescimento econômico. Nações Unidas Brasil. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/8. Acesso em: 4 Set. 2021.

TIAGO REIS. Shadow banking: o sistema paralelo que financia a economia global. Suno. Disponível em: https://www.suno.com.br/artigos/shadow-banking/. Acesso em: 4 Set. 2021.

Toward Universal Financial Inclusion in China Models, Challenges, and Global Lessons. Open Knowledge — World Bank, 2018. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/29336/FinancialInclusionChin aP158554.pdf?sequence=9&isAllowed=y. Acesso em: 4 Set. 2021.

UFA2020 Overview: Universal Financial Access by 2020. World Bank. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/financialinclusion/brief/achieving-universal-financial-ac cess-by-2020. Acesso em: 4 Set. 2021.

--

--

GECHINA-ASIALAC UnB
GECHINA-ASIALAC UnB

Grupo de estudos do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB) que se dedica a analisar a China e seu papel no mundo.